O Sentido da Vida

João Lourenço
18 min readSep 18, 2019

Muitos buscam, outros acreditam saber o real sentido da vida. Monty Python debocha dele; já António Damásio, pesquisa os mecanismos que fazem termos consciência da vida e buscarmos esse sentido.

Pule o próximo parágrafo se não entender de eletrônica.

Nos anos 80 me deparei com o seguinte fato; podemos ter um processador (CPU) a partir de uma EPROM (chip de memória estática): Se colocarmos alguns sinais externos (inputs) direto no barramento de endereços, e usarmos o bus de dados (outputs) para realimentar outras entradas de endereços, e os demais sinais de dados para acionamentos externos, físicos. Junte a isso dados (pode ser hexa) em cada endereço e teremos uma programação básica, que somente ative a saída dos dados (outputs). Gerando algo similar a um ’jump’ (código de linguagem de máquina básico) e teremos um processador rudimentar. Isso me mostrou o quanto o conceito de software pode ser algo vago, pois tudo pode ser visto apenas como hardware, mesmo aquele código hexa gravado pode ser interpretado como conexões de fios que ativam saídas. Tudo se resume a interruptores de silício sendo ligados ou desligados, zeros ou uns. Em biologia seria diferente?

Fim parágrafo

O neurocientista

António Damásio é um médico neurologista e cientista português que trabalha no estudo do cérebro e das emoções humanas.

Glossário Damasiano

Emoções: São sensações, normalmente despertada pelos sentidos e que causam reações físicas. Surpresa, nojo, medo, alegria, tristeza e raiva são exemplos de emoções. Elas são universais e não culturais, ou seja, mesmo tribos isoladas as expressam. Emoções provocam movimentos musculares involuntários, podem arrepiar pelos e liberar hormônios ou outras substâncias, suor, lágrimas.

Sentimentos: É a experiência mental que nós temos do que se passa no corpo. É o mundo que se segue à emoção. Você pode ver alguém tendo uma emoção, não tudo, mas uma parte. Pode ver o que se passa na sua face, a pele pode mudar, os movimentos que são feitos etc., enquanto o sentimento você não pode ver. Ou seja, emoções podem despertar sentimentos diferentes em pessoas diferentes, variando de acordo com a vivencia e estruturas próprias de cada indivíduo.

Homeostase: Conjunto de funções que mantém um organismo estável, pressão, temperatura e todas as funções vitais. São as regras da autopreservação, pode-se dizer que nela estão os códigos da evolução das espécies.

Livros

Os livros a seguir estão em ordem de lançamento e coloco a minha ordem de leitura nos parênteses:

  • O Erro de Descartes, 1994 (primeiro que eu li)
  • O Mistério da Consciência, 1999 (terceiro)
  • Em Busca de Espinosa, 2003 (segundo)
  • E Cérebro Criou o Homem, 2009 (último lido)
  • A Estranha Ordem das Coisas, 2018 (quarto)

Pontos iniciais

Antes de falar dos livros vou tentar colocar os pontos principais do pensamento do cientista. Estes conceitos estão em todos os livros e as publicações vão ampliando determinados pontos e áreas, e solidificando as ideias propostas por Damásio. Sempre lembrando que o que coloco aqui é o que absorvi dessas leituras, posso esquecer ou distorcer algo, aconselho muito os originais.

Controle da vida (homeostase)

António Damásio exemplifica como bactérias e outros seres vivos primários, sem cérebro ou sistema nervoso, tomam atitudes pré-programadas (plantas também). São capazes de se aliar com outros seres para combater um inimigo maior. Ou seja, funcionam com processadores (ou programação) químicos.

O cientista lusitano vai do conceito mais simples, a ‘homeostase básica’ até o mais complexo os ‘sentimentos’ que é a homeostase na sua fase mais evoluída e existente somente em humanos.

O primeiros seres vivos e a maioria dos que existem por ai são unicelulares e sem os cinco sentidos como os nossos. A comunicação deles com o mundo é química, o seu comportamento ou inteligência é regido por um processador químico, por isso o parágrafo que falo de EPROM e eletrônica. Esses seres foram evoluindo, ampliando o número de células e sensores, e consequentemente reagindo melhor com o mundo. Depois surgiram seres com sistemas nervosos, trocando informação entre órgãos por impulsos elétricos, após isso um sistema central com um cérebro (processador elétrico).

Esses recursos, ou Plugins, foram aumentando a complexidade com sensores do ambiente ou os sentidos. As emoções como reação ao ambiente, captadas pelos sentidos e expressas por reações físicas (movimento), hormonais, químicas. E finalmente os sentimentos como os recursos no topo da pirâmide da evolução homeostática. O mais alto nível de controle e gerenciamento da vida diante de todos os obstáculos que podemos encontrar, ambiente, alimentação, disputas, violência e procriação.

Como se fosse uma empresa que começa pequena e vai crescendo, exigindo novos cargos gerenciais além dos operacionais. O operário faz as peças, mas alguém precisa controlar o que fazer, além de trazer os materiais e levar os produtos, e a equipe de compras e vendas terá que interagir com o meio externo. Essa estrutura garante a sobrevivência no presente, mas uma empresa que tem um controle estratégico, pensando no futuro, analisando o passado e criando cenários terá bem mais condições que as outras. Os sentimentos são como a presidência ou o ‘conselho administrativo’ da vida, e só presente em humanos.

Também é dito que a homeostase é basicamente regulada por itens positivos e negativos; recompensa e castigo; prazer e dor.

Lembrando Richard Dawkins quando diz: ‘A natureza não é inteligente, a natureza não é justa, ela apenas responde a mecanismos que proporcionam a evolução’. Podemos pensar nesse ‘mecanismo’ como a homeostase, lembrando que Dawkins é bem mais radical e um argumentador ferrenho contra qualquer item espiritual.

Dawkins tem no livro ‘O Gene Egoísta’ uma ótima analogia em relação as motivações da evolução, mas com o foco a partir da biologia para os sentimentos. Não sei se poderia dizer que Damásio segue o caminho inverso, parte dos sentimentos para a biologia. Mas eles tem focos e abordagens diferentes.

Sentimentos

Pode-se dizer que esse conceito é toda a base do pensamento de António Damásio. A capacidade de processar as emoções como medo, raiva e alegria, que são comuns a tantos seres vivos, e gerar, a partir delas, algo particular ‘os sentimentos’, que fez nascer o homo sapiens.

Raiva, medo, alegria são possíveis de visualizar fisicamente, todas as emoções geram reações físicas (em humanos minimamente saudáveis) e elas são percebidas por movimentações musculares e hormonais. Já sentimentos, que são particulares, não são exatamente perceptíveis e para poder expressar isso houve a necessidade de uma nova ferramenta; -a comunicação, seja ela por sons (palavras) ou símbolos visuais, e essas expressões foram crescendo e formando uma cultura. Quem conseguia a melhor expressão desses sentimentos tinha vantagens em relação aos seus pares, gerando a evolução da espécie humana.

Os sentimentos fizeram do homo, ‘Sapiens’. A inteligência, a linguagem, artes e cultura nasceram desse novo item. Gerado a partir de emoções (comuns a diversos seres vivos), foram os sentimentos que geraram a necessidade de novas ferramentas para a expressão deles.

Sentimentos são também a fonte da consciência, de termos noção que somos únicos, indivíduos, que temos memória, possibilidade de armazenarmos uma narrativa de vida, uma história. Podermos imaginar o futuro e sabermos da nossa finitude, consciência da morte; para convivermos com toda essa complexidade e angústia, criamos normas de conduta, moral, ética, religiões e filosofia.

Inteligência

A partir dos sentimentos, armazenamento de memórias de forma roteirizada e possibilidade de criar cenários, desenvolvemos a capacidade de reagir de modo diferente do puramente ‘instintivo’ diante de problemas. Criamos ferramentas, montamos estratégias de caça, guerra, conquista ou defesa.

Muitos pensam que a melhor decisão é a racional, que não envolve emoções. Em seu primeiro livro Damásio refuta esse senso comum. Através de estudos com pessoas que tiveram lesões em áreas cerebrais que processam emoções e empatia, mas mantiveram as demais funções em funcionamento, verificou que elas conseguem elencar todos os prós e contras de uma decisão, porém não conseguem bater o martelo, decidir qual é a escolha.

A área racional pode elencar os itens, estabelecer relações, mas só as emoções tomam a decisão diante de uma dúvida, de um dilema.

Inteligência artificial

Quanto ao conceito de inteligência ‘natural’, como já foi dito, uma única célula tem sua homeostase, ou controle de sua vida, ou processador químico. Um órgão tem sua homeostase e seu processamento, químico ou elétrico, um sistema (digestivo, hepático) também, e o cérebro, por sua vez, rege toda essa orquestra.

Qualquer problema que analisamos envolvem ‘zilhões’ de processadores (químicos e elétricos) trabalhando em paralelo. Somos influenciados pelos nossos sentimentos, que são particulares e podem mudar, logo é impossível criarmos uma inteligência artificial igual, ou mesmo simularmos a humana. Podemos criar inteligências diferentes e possivelmente melhores que a humana, mas não igual. Mas o que é uma inteligência melhor? Cada indivíduo, de acordo com seus sentimentos, terá uma resposta diferente.

Já pensava assim e o autor também comenta; intuição é a capacidade de criar atalhos não conscientes para uma situação. Damásio compara isso ao chamado big data, análise de inúmeros dados para achar padrões, relacionamentos, e apresentar conclusões, não necessariamente com uma explicação.

Algoritmos

Usava muitas vezes essa expressão para descrever alguns comportamentos e ações humanas. Lendo “A Estranha Ordem das Coisas”, me deparo com o argumento que essa definição está errada, pois o ser humano não tem um comportamento binário, isso quando Damásio fala sobre inteligência artificial.

Segundo o autor podemos ser efeito de alguns algoritmos, mas não somos regidos por eles, vou traduzir o exemplo dele do mundo orgânico para o mundo eletrônico.

Algoritmo está para eletrônica digital, já comportamentos humanos estão para eletrônica analógica. Se imaginarmos um programa rodando em um computador, ele não sofrerá alteração em seu resultado em função de fenômenos físicos externos, temperatura, estática, umidade. Ele funcionará ou entrará em erro (não funcionará).

Já em sistemas analógicos (TVs e rádios antigos por exemplo), essas mesmas interferências externas podem gerar respostas diferentes em intensidades diferentes, isso até pode ser considerado um erro, dependendo de como definirmos isso, mas não significa sempre um ‘não funcionamento’.

Então algoritmo é algo programado, digital, que até pode conter erros de programação, ou mesmo, resultados inesperados. Também pode simular agentes externos com sensores de temperatura e umidade e prever uma programação para isso, mas ele não será uma reação natural a algo, será uma ‘simulação’ de uma situação natural, que dificilmente conseguirá conter todas as possibilidades.

O correto é pensar em homeostase, que são respostas diferentes e até inesperadas para determinadas situações. Mesmo com condições externas iguais, algum fator interno pode alterar o resultado, no caso de algoritmo os fatores internos são conhecidos e pré-programados.

Tela de cinema

O que é a consciência? Saber que eu sou eu, que estou sentado diante de um monitor digitando o texto num teclado, que lá fora está uma temperatura amena e que meus pés estão aquecidos, saber quem são meus familiares e amigos, minhas escolhas durante a vida; isso chamamos de consciência.

Está é a parte mais complexa e difícil de entender, mas é a grande orquestra completa com seu maestro. Damásio diz em uma entrevista: “Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência.”

São citados muitos casos, tratados em seu consultório e laboratório, mais relatos de colegas sobre diversas doenças e comportamentos advindos de lesões cerebrais.

Inicialmente podemos imaginar que temos um ser intermediário, um avatar (não um homúnculo), onde são escritas todas as informações por nossos sentidos, visão, audição, olfato, gustação e tato. Junto a isso temos a leitura interna do nosso corpo, má disposição, dor, fome e sede. Depois o cérebro lê essa imagem corporal intermediária (avatar/interface) e processa tudo, armazena algumas coisas na memória e toma atitudes, comer, ir ao banheiro, colocar ou tirar roupas.

Só que essa estrutura intermediária, onde escrevemos sensações e depois lemos, pode ser ativada de dentro para fora. Se lembrarmos ou imaginarmos algumas situações elas podem gerar sensações físicas como náusea, medo ou alegria. Podemos ‘sentir’ cheiros despertados por lembranças. Assim como, essa área de escrita e leitura (interface), pode distorcer algumas coisas, dor pode provocar prazer e vice e versa.

Imagine; é esperado que as palavras que aparecem no monitor venham da digitação no teclado, mas elas também podem vir de reconhecimento de voz ou invasão de um hacker, ou vírus; assim é a consciência, imaginamos que tudo venha dos nossos sentidos, mas muitas coisas podem vir, ou sumir, do nosso inconsciente ou outros lugares.

Tem um filme chamado ‘Strange Days’, ‘Estranhos Prazeres’ no Brasil. O tema é um novo tipo de droga, onde uma pessoa coloca um aparelho, tipo uma boina, e grava todos os seus sentimentos e depois outra pessoa o coloca e sente exatamente o mesmo. Os temas mais procurados são os de gravações de experiências em situações arriscadas como roubar, espancar e sexo. Muito interessante esse roteiro se quisermos analisar o que são sentimentos, a individualidade deles, a ponto de um homem (no filme) poder sentir o orgasmo feminino.

Outro filme interessante é ‘Até o fim do mundo”, do diretor Wim Wenders, em uma parte é mostrado uma máquina capaz de filmar sonhos, ou o inconsciente, e muitas pessoas ficam literalmente viciadas e não conseguem largar estes pequenos visores, o filme é de 1991 e isso me lembra o vício que se tornou os Smartphones e as redes sociais hoje.

Economia

Se pensarmos em eficiência energética sem dúvida a maioria dos seres vivos são as máquinas mais eficazes da natureza, com um pouco de terra, água e luz plantas enormes se formam. Com frutas, grãos e outros seres orgânicos mais água somos capazes de funcionar por um bom tempo. Como se consegue isso? O segredo não é só a geração de energia, também a economia dela, nossos tecidos são feitos para atender a sua necessidade, sem mais nem menos. Poderíamos ter circuitos de nervos muito rápidos na transmissão de informação, sentidos mais precisos, uma faixa maior de audição, visão, olfato, mas isso custaria muito caro. Então alguns seres vivos podem ter um sistema melhor que outro, mas nunca todos eles.

Na consciência também somos assim, imaginamos que estamos vendo, ouvindo, percebendo tudo a volta, mas temos diversos recursos que criam essa ilusão. Quem já estudou um pouco sobre compactação de arquivos digitais, seja por códigos e tabelas (textos e imagens raster [jpg, png]) ou matemáticas (imagens vetoriais) sabe como é possível gerar objetos complexos, economizando, reutilizando e dando atenção aos itens mais importantes.

Apesar de a evolução nem sempre descartar alguns itens que foram vantagem em determinada época e hoje são desnecessários, mas é assunto para outra hora.

A cola de tudo

Já ouvi professores falarem; -eu lembro dos melhores e dos piores alunos, já dos médios não, ou seja, lembram-se dos que despertaram algum tipo de emoção. Na época que queria convencer alguém a sair sempre dizia: -Tu nunca vai lembrar de uma noite bem dormida. Normalmente lembramos de situações que envolvem emoções fortes, sejam elas boas, agradáveis ou nem tão boas. Muitos lembram onde estavam quando o seu time ganhou campeonato X ou quando os aviões colidiram nas torres gêmeas. Essas emoções geraram sentimentos que ‘colaram’ essas lembranças de um jeito mais eficiente.

Esse é um dos argumentos de Damásio, as emoções geram sentimentos que são a cola das nossas lembranças. Algumas podem ser resgatadas e revestidas com novos sentimentos, podemos pensar aqui em terapias e psicanálise, mas não é o objetivo. Lembrando de economia, as nossas memórias utilizam os mais altos e evoluídos sistemas de compactação, muito além de um ‘zip’, ‘rar’ ou ‘7z’. E elas quando revividas sempre terão alguma alteração, como se fossem pegas, manipuladas (o que gera alteração) e re-guardadas.

Outro assunto é o tal de inconsciente, que é aquela imensa gaveta que vamos atirando tudo o que não sabemos classificar, além disso, se pensarmos na evolução das espécies, compartilhamos áreas do cérebro com muitos dos nossos antecessores, muito além de macacos como os detratores de Darwin falavam, e todas essas memórias podem ser o inconsciente coletivo que Jung citava. E estas áreas primárias podem não falar o mesmo ‘idioma’ que nossa consciência entende, por isso muitos sonhos, e outros fenômenos veem como sensações, pois nem sempre sabemos interpretá-los.

A metáfora mais besta que já fiz

Tentei achar alguma metáfora de como criamos os sentimentos e como os expressamos, pensei em partículas subatômicas, número de prótons gerando diferentes átomos. Mas é complicado, quem saca já pode ter captado, mas acabei criando esta que acho extremamente besta, mas é a única que consegui.

Vamos pensar na formação do petróleo, ele é feito pela decomposição de material orgânico, plantas e animais, vamos pensar isso como emoções que são iguais para todos os humanos (raiva, medo, alegria). Para se transformar em petróleo esse material precisa passar por um longo tempo sob determinada temperatura, pressão e ambiente. Vamos pensar isso como sendo as características de cada indivíduo o que irá gerar determinado tipo de óleo, mais pesado, leve etc.

Uma vez pronto o petróleo, podemos tirar diversos materiais dele, piche, gasolina, óleo diesel, lubrificante, gás e insumos para o plástico. Desses subprodutos podemos utilizar a gasolina para um coquetel Molotov ou movimentar uma ambulância, do plástico podemos criar uma garrafa PET ou um brinquedo.

Assim são os sentimentos, eles são formados por emoções que são processados por características individuais, alguns transformam raiva em violência, outros em culpa e outros em motivação para mudar algo. Outra metáfora possível é sobre como cada tipo de planta gera frutos e flores diferentes para o mesmo solo e mesmo ambiente, já escrevi sobre isso aqui.

A metáfora é boba, mas é para tentar mostrar que emoções são comuns a todos e tem componente físico, geram caretas, liberação de hormônios, sorrisos ou náuseas; já sentimentos são internalizados a partir de emoções de modo particular, sentimentos são individuais e não conseguimos expressá-los mostrando os dentes, rosnando ou abanando o rabo como faz um cão, é necessário algo mais, palavras, desenhos, música e outras linguagens. Isso demonstra porque algumas pessoas gostam de determinadas expressões artísticas e outras não, pois seus sentimentos podem ressonar, serem parecidos ou totalmente diferentes de quem gerou a obra, podem falar o mesmo idioma de sentimentos ou não.

Livros (resumo)

O Erro de Descartes

Descartes diz “Penso, logo existo”, Damásio parafraseia “Sinto, logo existo”. A consciência, ter a noção de existência, individualidade e saber que vamos morrer são características humanas e isso advêm dos sentimentos, então existir é sentir. O ‘Pensar’ de Descartes é precedido dos sentimentos segundo Damásio.

Lembrando Sartre: “A existência precede a essência”, animais já nascem com sua essência os humanos a constroem.

A ideia transposta no livro é baseada em pesquisa de pessoas com lesões no córtex frontal, área que controla emoções e empatia. Pessoas com lesões desse tipo e que se mantém saudáveis, perdem os sentimentos e não conseguem tomar decisões. São capazes de elencar todos os prós e contras de uma decisão simples, mas não são capazes de bater o martelo, decidir por uma das opções.

Segundo ele, a razão, por si só, não sabe quando começar ou parar de avaliar custos e benefícios para uma tomada de decisão. É o quadro referencial das nossas emoções que seleciona as opções.

O Mistério da Consciência

Muito resumidamente, Damásio propõe que nosso sentido de “Self” se constrói sobre a base dos mapas neurais que controlam a homeostase do corpo a cada instante (avatar). Esses mapas criam uma representação do estado do corpo no cérebro, e essa representação possibilitaria o que percebemos como sendo o “Eu”, nosso sentido do “Self”.

A nossa consciência “Self” seria a organização, a roteirização da leitura de nossos sentidos, mais o estado (e interferência) do funcionamento corporal, com o preenchimento e arranjo de nossas memórias e sentimentos. É o maestro que rege e permite uma orquestra tocar e ser percebida em execução.

Assim, Damásio consegue vincular a consciência à homeostase, ao esforço do organismo para manter seu estado interno dentro dos limites compatíveis com a vida, ao mesmo tempo em que oferece um enraizamento plausível para o “Self”.

Mesmo que não tenhamos consciência do sentido do “Self” implicado em cada uma das imagens sensoriais percebidas e evocadas, ele está ali o tempo todo dizendo que somos nós que estamos criando essas imagens e não outro.

A consciência surgiria como um sentimento do sentimento. *Percepção de emoção. Repetindo a frase de uma entrevista “Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência.”

É o livro mais complexo, pois trata do todo das ideias do autor, além da subjetividade e de todos viverem essas sensações de ter controle de um equipamento “Self” e de ele possivelmente estar conectado a algo maior e sobrenatural, isso pode gerar dúvidas e contestações do leitor.

Muitos podem imaginar o “Self” como um software instalado em um hardware (corpo) e com possibilidade de migrar este software entre hardwares (reencarnação). Plataformas, sistemas operacionais (diferentes seres, transmutação) e até mesmo o manterem na nuvem, ‘cloud computer’ (vida eterna), isso não é ironia, talvez uma metáfora sem graça, e vai do sentimento de cada um.

Em Busca de Espinosa

Neste livro Damásio mostra seus pontos de identificação com o filósofo Espinosa, como o conceito de integralidade de corpo e “alma”. Espinosa afirmava que corpo e alma são exatamente a mesma coisa, tanto quanto Natureza e Deus.

O livro também explica, a partir de observações e descobertas, como o mapeamento dos estados do corpo pelo sistema nervoso se traduz em emoções; o medo, por exemplo, é a sensação da reação do corpo a um perigo, e como a associação de emoções à percepção de suas causas resulta em sentimentos que permitem distinguir o certo do errado e decidir com sensatez.

O conceito de ‘conatus’ de Espinosa assemelha muito com a homeostase que Damásio defende. Espinosa: “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”.

‘As emoções se encenam no teatro do corpo, os sentimentos no teatro da mente. Emoções, e a horda de reações subjacentes a elas, são parte dos mecanismos básicos da regulação da vida; os sentimentos também contribuem para a regulação da vida, porém num nível mais alto… a emoção habilitou os organismos a responder de forma eficiente porém não criativa a um número de circunstâncias favoráveis ou ameaçadoras à vida. O sentimento introduziu um alerta mental para as circunstâncias boas e más e prolongou o impacto das emoções ao influenciar atenção e memória de forma duradoura. Por fim, numa combinação frutífera de memórias, imaginação e raciocínio, os sentimentos levaram à emergência da antevisão e à possibilidade de criar respostas novas, não estereotipadas, (os sentimentos) traduzem o estado atual do organismo para a linguagem da mente’.

E o Cérebro Criou o Homem

A mente consciente dos humanos, munida com esses tipos complexos de “Self” e apoiada por capacidades ainda maiores de memória, raciocínio e linguagem, engendra os instrumentos da cultura e abre caminho para novos modos de homeostase nas esferas da sociedade e da cultura. Em um salto extraordinário, a homeostase adquire uma extensão no espaço sociocultural. Os sistemas judiciais, as organizações econômicas e políticas, a arte, a medicina e a tecnologia são exemplos dos novos mecanismos de regulação.

A Estranha Ordem das Coisas

Neste livro o foco muda um pouco do indivíduo e vai para grupos de pessoas. De como sentimentos funcionaram como a homeostase de sociedades. Sentimentos comuns unindo e também desenvolvendo culturas, política e hierarquias. E todas as vantagens e problemas que envolvem essa vida em comunidade que unirá e desagregará indivíduos e grupos menores em função de sentimentos comuns ou conflitantes.

Considerações finais

  • Lembro do Nobel de economia de 2017 que contempla estudos sobre as consequências dos mecanismos psicológicos e sociais nas decisões dos consumidores e dos investidores.
  • Yuval Harari e suas análises e cenários onde no futuro teremos ‘algoritmos’ não sentimentais decidindo por nós.
  • Inúmeros livros na minha estante que falam das irracionalidades das nossas escolhas.

Todos corroborando com as ideias e estudos de António Damásio.

Os assuntos abordados por Damásio mexem nas crenças mais profundas que podemos ter. E é justamente isso que ele procura entender de modo respeitoso e não agressivo e colocando a filosofia lado a lado com a ciência. Como funciona e onde está o nosso âmago, os nossos sentimentos, nossa percepção de individualidade, consciência e é dele uma das frases que mais gosto, não tenho como citá-la literalmente, pois não lembro se está nas 1720 páginas dos seus livros ou nos inúmeros artigos e entrevistas que vi ou li:

Posso não acreditar nas mesmas coisas que você acredita, mas eu sinto o mesmo que você sente pelas suas crenças, nas minhas crenças.

Pensar mais profundamente, ou mesmo exercitar um pensamento científico sobre nosso comportamento, nossas motivações, não necessariamente precisa colidir com nossas crenças, podemos aceitá-las, dar um peso maior ou menor para cada uma delas ou mesmo refutá-las, mas procurando bons argumentos. E pensar com outras visões pode ampliar nossa percepção da vida, sem descartar nada, ou então tentar reorganizar as peças que não encaixam.

Depois de leituras assim, outros argumentos podem tomar dimensões diferentes. Voltando ao Big Data, intuição, esses dias ouvi a tese de que o fato de armazenarmos nossos conhecimentos externamente (buscas no Google) impossibilita ligarmos pontos na mente, a dita intuição ou insights, pois esses dados não estão disponíveis dentro desse caldeirão que é nosso cérebro, mas é assunto para outra hora.

Visitei o Museu Nacional de Antropologia do México logo após ter encerrado o livro ‘A Estranha Ordem das Coisas’ onde Damásio aborda o conceito de homeostase de grupos. Fui inundado de insights e compreensão dos conceitos do neurocientista, e da cultura centro americana tão rica, mesmo longe e isolada do centro do mundo na época (Eurásia), sem alguns recursos como a roda, animais domesticados e domínio do metal.

Se eu não me controlar fico eternamente interligando pontos e citando outros autores e temas, pois são assuntos que me interessam muito. Damásio não nos explica qual é o sentido da vida, ele não busca um “O Quê” mas nos dá pistas de “Como” e “Porquê” buscamos esse sentido, tudo isto está nos nossos sentimentos, na busca de expressá-los e entendê-los, mesmo inconscientemente.

PS, neste link (complexidade) falo de algumas coisas que complementam o que foi apresentado aqui, como a relação entre entidades orgânicas e mecânicas/digitais.

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